terça-feira, 27 de março de 2007

Labirinto Citadino.

Eram oito da manhã e já estávamos com as mochilas prontas a caminho da rodoviária, lembrando das orações que ouvimos pelos auto-falantes da cidade durante as duas madrugadas. Algumas horas num ônibus digno daquelas comédias de domingo à tarde foi o que levou a viagem para Fez. Com a sensação de que o precário meio de transporte iria desmontar a qualquer momento pelas estradas mal-conservadas, ouvia-se galinhas, pessoas vomitando e o que mais pudesse compor uma trilha sonora para agradável passeio. A densidade demográfica de locais no mesmo ambiente fechado resultou num cheiro forte o suficiente para ser ignorado. Das duas uma: ou eles passam dias sem ter contato com água e sabão ou a roupa não é lavada nunca. Não existe outra explicação para aquele cheiro de cachorro molhado. Os aromas do país, aliás, serão lembrados para sempre. E isso não significa que seja algo positivo… Ao mesmo tempo em que as Medinas têm a sua graça pelo colorido dos sacos de grãos, pela exposição dos tapetes e das jóias, o cheiro em alguns lugares beira o limite do suportável.

No mesmo ônibus, estava um grupo de portugueses que, numa tentativa de registrar o cenário marroquino além dos vidros fechados, enquadrou um policial na fotografia.
Foi o suficiente para que fossemos parados… O lisboeta só não perdeu o cartão de memória da máquina porque o oficial devia estar num bom dia. Aquela velha história de que “um exemplo vale mais do que mil palavras” nunca foi tão acertada. Depois dali passamos a ter muito cuidado com o que apareceria nas nossas imagens. Ao longo da viagem, ainda, paramos em um lugar para comer alguma coisa. É inegável que o aspecto era bom, mas depois de ouvir que aquilo seria carne de cão, perdi a coragem de provar. Alguns minutos depois, com a ideia já digerida e mais uma “frescura” deixada de lado, dei uma dentada… Nunca vou saber de fato se comi um coleguinha da Nina – cachorrinha da Amanda – mas a verdade é que aquilo era muito bom.

Chegamos em Fez ainda de tarde e fomos direto para umas ruínas que ficavam próximas da rodoviária. Ali, só mais um grupo de turistas, que viajava com seguranças… Olhamos a mais antiga das cidades imperiais de cima e a dimensão de uma sociedade entre-muros. Entrar na Medina pela porta mais próxima nos levou também a uma feira enorme, em que se vendia de tudo e mais um pouco. Ficou a promessa de voltarmos depois de encontramos algum lugar para passar a noite... Hotel encontrado, preço fechado e estômago vazio: foi a combinação que nos impulsionou pelas ruas históricas de Fez.

Com mais de nove mil ruas de todos os tamanhos imagináveis, a Medina de Fez el-Bali, a cidade antiga, é impressionante. Dentro dos muros, os diversos
“souks” são uma espécie de Uruguaiana em maior escala e mais organizado, se é que podemos colocar assim. Cabeças de camelos, morangos, jóias e montes de lixo se mesclavam numa harmonia paradoxal pelas ruas, que não pareciam ter mais fim. A antiga ideia de um país em tons de terracota e ocre foi rapidamente substituída por uma palheta de cores infindáveis e por uma mistura de sons nunca ouvidos antes. Os burros, personagens importantíssimos para traçar um cenário fiel a Fez, servem para tudo: carregam o lixo, transportam peles, mercadorias e pessoas. A quantidade de animais caminhando por entre as pessoas basta para percebermos que eles são itens de primeira necessidade para o funcionamento de uma cidade que parece ter parado no tempo.

Depois de nos perdermos numa caminhada um pouco desorientada, encontramos um lugar para comer. Num restaurante logo na entrada da Medina fizemos amizade com Mohamed, primogênito de alguma família tradicional e recebemos um convite para irmos conhecer o terraço da sua casa mais tarde, tomar um vinho e fumar Narghile, uma espécie de cachimbo d’água… Como não tínhamos nada marcado para mais tarde e estávamos no espírito de convívio com os locais, combinamos de nos encontrar ali mesmo às 21h30m.

Na companhia de um amigo de Mohamed, fomos andando por todas as ruazinhas da Medina. Depois de uma caminhada às cegas pelo labirinto em que a Medina havia se transformado, perdi o rumo. Não sabia definitivamente onde estava e só pedia uma coisa aos
meninos: “Não me deixem sozinha” foi a frase mais falada da noite. Eles têm um espírito aventureiro bem apurado em viagens de mochila nas costas por países que figuram na rota do Interail. Eu ainda não cheguei lá… Por uma escada escura demais e estreita o suficiente para ser suspeita, subimos. Até ali, estava apreensiva o suficiente para não conseguir ser muito simpática, mas os meninos pareciam saber onde estavam se enfiando… Pelo menos, era a sensação que eu tinha a todo momento. Chegamos ao terraço e encontramos mais um grupo de marroquinos e um casal de turistas americanos. Finalmente, fiquei mais tranquila, mesmo sem saber direito porquê. Comecei a conversar com a Nina, típica americana que trabalha com Responsabilidade Social e estava passando férias com um amigo que vive em Marrocos. Depois de muita conversa jogada fora e sob protestos em relação à balbúrdia que estávamos fazendo, fomos “expulsos” do terraço. Uma pena. A vista da Medina à noite nos proporciona um ponto de vista único. Foi inevitável lembrar da luminosidade única das favelas cariocas em noites de céu estrelado, por mais que não houvesse comparação possível.

Voltando à Marrocos e deixando o Rio de lado mais uma vez, ouvi a frase “Vamos para uma discoteca?”. Eu achei estranho ir para uma discoteca num país islâmico e numa cidade como Fez, que ainda não se destacava por ser mais “liberal”. Mais uma vez, os meninos pareciam saber onde
estavam se metendo e eu fui junto. Chegamos a um hotel de luxo e fomos direto para o subsolo. Ali, por baixo de toda a riqueza que alguns turistas esbanjam, os véus caem e a maior parte dos decotes não é nada conservadora. Numa espécie de “casa de meninas” local, uma mulher balançava os quadris numa Dança do Ventre menos bonita daquelas que se imagina. Observamos por um tempo o ambiente e decidimos ir dançar um pouco. Ao verem rapazes novos e com aquela plaquinha de “sou turista” na testa, algumas meninas abandonavam o olhar submisso que se via na rua em troca de ostensivos convites visuais. Eu, sempre acompanhada do Kiko, não podia deixar de achar graça naquilo tudo… Nunca tinha entrado num lugar tão surreal. E acho que posso ficar um bom tempo sem entrar…

Depois de um número de horas suficientes para validar a experiência decidimos ir embora. “Carla, faz cara de quem está passando mal para nos despedirmos sem ficar chato”... Minha cara de enferma não deve ter convencido muito, já que eles ignoraram completamente a tentativa e nos pagaram mais uma bebida. Quando percebemos que nossos anfitriões estavam se metendo numa briga digna de qualquer discoteca da moda na Zona Sul do Rio, saímos fugidos… Só senti o Hugo me puxando, enquanto Kiko e Paixão nos esperavam do lado de fora, já com um táxi a espera. Numa negociação um tanto apressada com o taxista fechamos um preço para que ele levasse os quatro até o hotel… Para trás ficaram a “discoteca”, os Mohameds e uma das noites mais bizarras da minha vida.

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