Os olhos estavam imersos no café às voltas dentro da xícara, que era pequena demais para suportar todos os pensamentos. Mexer a colher prateada já não era um movimento pensado: assim como sentar àquela mesa todos os dias após o almoço, aquilo era mais um gesto automático da rotina. Pensava no tudo e no nada. E ela era a imagem mais doce que lhe ocorria, junto com o aroma do café. Era alegre, inteligente e tudo o mais que ele poderia querer. Ao mesmo tempo, era teimosa e demasiadamente livre para querer ser de alguém. Sua espontaneidade chegava a ser irritante e a voz sempre empolgada com tudo tinha uma infantilidade inexplicavelmente atraente.
Estar com ela era criar uma terceira dimensão, onde as coisas não pereciam e o tempo parava. Mesmo que isso acontecesse pouco e sempre inesperadamente. Apesar de saber que ainda haveria mais dois ou três encontros como aqueles, tinha total consciência de que estava acabado. Ou acabando… Como toda decisão tomada “para sempre”, esta também duraria até o próximo telefonema em que ela faria piadas sarcásticas e soltaria aquele suspiro perturbador para evitar os silêncios que sempre falam mais alto. A partir dali, qualquer desculpa seria válida para a necessidade de um encontro pseudo-acidental.
E a mão quente a percorrer-lhe as costas, junto com as unhas mal-ajeitadas e o cabelo desgrenhado comporiam o golpe mais baixo que ela sabia dar. E ele se sentiria absurdamente fraco, covarde e impotente diante da menina para quem simplesmente não sabia – e não queria saber – dizer não. Ela era irritantemente mimada. E ele sabia que a culpa era dele, por estar sempre ali, na hora em que ela pudesse também estar. Essa era a principal diferença entre os dois: enquanto ele pulava de cabeça a cada dia que se viam, ela sempre usava cordas de segurança. Ele se dava. Ela estava ali como um empréstimo perecível.
O café já não tinha o mesmo efeito que há dois dias. Antes, a queimadura na garganta – fruto da xícara bebida num gole só – dava-lhe outra coisa para pensar. Agora, estava tudo frio: ele e o café. Cada vez mais parecidos com ela. E com o casal que eles um dia poderiam ter sido. O que ele queria era um copo-d’água que tirasse o ranço da bebida e lavasse todos os pensamentos que agora repousavam no fundo vazio de uma xícara. Era capaz de odiá-la genuinamente por um instante… Até perceber que os pequenos detalhes odiosos eram os elementos que, na verdade, prendiam-no a ela.
Ao fim de duas horas, levantou disposto a dar um basta na situação. O olhar de pena que sentia vindo de todos os lado o irritava mais do que o fato de ela não ter aparecido. Ela sempre fazia isso, mas era a primeira vez que ele se sentia observado de tal maneira. Adotou a postura artificialmente arrogante que todos os submissos têm e forçou passos decididos rumo à porta. Sentia-se orgulhoso pela decisão que havia acabado de tomar. No caminho de casa, no entanto, o cair da tarde pareceu pesar-lhe mais do que o suportável e os passos foram ficando curtos e lentos, como os de uma pessoa que não quer verdadeiramente chegar. Ele sabia que dentro de uma hora estaria sentado num sofá, esperando pelo pedido de desculpas, pelas piadas sarcásticas e pelo silêncio constrangedor. Como sempre, ele estaria esperando por ela…
Um comentário:
Me destes até vontade de tomar café.
Afim, estou(estamos) sempre esperando, não é mesmo? A xícara me parece mais do que apropriada.
Adorei o texto.
Bj
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